Ao me saberem açoriano, diversos continentais perguntam 'Nunca te fez confusão viver numa ilha?'. Mesmo muitos dos que se encantam com as paisagens e o acolhimento, contam-me de um ocasional sentimento de claustrofobia, confessam que por vezes se sentem agoniados por estarem rodeados de mar, por não poderem atravessar fronteiras terrestres, fugir para outra banda, dar uma volta de carro atá ao país do lado.
Respondo que não. Que nunca tive esse sentimento quando vivia a tempo inteiro na ilha de São Miguel nem o tenho sempre que tegresso a casa e por lá fico, em trabalho ou em férias. Que nunca pensei: 'Vivo numa ilha, estou tramado.' Revelo até um escândalo: durante o meu crescimento nunca pensei que vivia numa ilha. Nunca reflecti sobre o assunto, muito menos acompanhado de bibliografia. Nunca passei um minuto a matutar nas questões do 'mar por todos os lados', do 'isolamento', da 'solidão', da 'limitação'. Estava demasiado preenchido. A ilha era a minha terra, onde tinha vivências contraditórias, umas alegres, outras não, como acontece em qualquer lugar do mundo.
Nem na fase das inquietudes habituais quis levantar voo para território distante. Na adolescência nunca senti o desejo urgente d eme ir embora. Viajar para o continente e aí viver era apenas o percurso normal de quem havia terminado o liceu e queria prosseguir os estudos. Não passei tardes no quarto a fantasiar com a vida lisboeta e não fui para cima de uma rocha como um poeta romântico a imaginar os mundos 'cosmopolitas' para lá do horizonte. Era feliz onde estava - tanto quando pode ser feliz um adolescente. Com a sorte de ter uma família, um grupo de amigos, namoradas, uma vida cultural feita de muitos discos, livros e filmes que nos chegavam de fora com a velocidade certa, de ber fininhos bem tirados em cervejarias onde se falava, e debatia e se asneirava. A ilha nunca teve qualquer dramatismo, esse tipo de dramatismo de quem a vê de fora, mesmo quando está dentro.
A ideia de que o ilhéu é um ser prisioneiro entre vagas e de que quer sempre ir mais além do que o espaço que habita é um cliché que convém mais a uma poesia gasta da vivência insular do que à realidade quotidiana. Claro que não me refiro ao sonho emigrante que muitos açorianos tiveram em alturas de dificuldades extremas. Penso naqueles que têm condições materiais mínimas e alcançaram à sua maneira uma posição de conforto e de pertença a uma comunidade com virtudes e naturais de feitos. Muitos deles, claro, associados ao desporto federado de comentar a vida dos outros.
É curioso perceber que muitos dos visitantes que partilham este sentimento repentino de estarem encerrados no meio do Atlântico, quando voltam ao ninho, poucos saem dos seus circuitos habituais. Poucos saem do seu roteiro, seja pessoal ou profissional. Não visitam bairros alheios. Não conhecem o nome das avenidas, das ruas, das freguesias da sua cidade. Vivem em ilhas ainda mais pequenas do que as ilhas onde por instantes se sentiram prisioneiros. Vai-se a ver e somos todos ilhéus. Pensem nisso.
In, Azorean Spirit
Sata Magazine n.º 72
Fevereiro - Abril 2016
Apesar de não me rever no testemunho de Nuno Costa Santos quando ele fala de nunca ter sentido a vontade de sair da ilha (eu tive muitas vezes ... tantas que até chegou o dia de sair), não podia deixar de transcrever, na íntegra, o texto que se pode encontrar a bordo dos aviões da Sata Internacional ... ops, desculpem ... da Azores Airlines (raio de nome e dessa mania de usar a língua inglesa para chegar a todos), para mostrar que o escritor e argumentista de 41 anos não deixa de ter uma certa razão aos que passam pelas ilhas em visita e que, passados poucos dias, se sentem agoniados com a claustrofobia que o mar lhes causa e que, ao regressarem a casa, vivem, de facto, em ilhas ainda menores do que aquela que visitaram. Claro que não podemos generalizar o assunto e dizer que todos os visitantes daquelas ilhas são ilheús de um continente e claro que não podemos generalizar que todos os ilhéus anseiam um dia rumar para lá do horizonte.
Somos realmente todos ilhéus.