Por falar em poesia …
Uma vez que os posts desta semana estão a ser dedicados quase em exclusivo à poesia, aqui vai mais um, que é para equilibrar a coisa e terminar a semana com o mesmo tema.
Como sabem, é bastante comum surgirem ‘desafios’ da rede social Facebook – uns parvos que dá vontade de dar uma estalada a quem inventou o dito cujo e outros mais interessantes que fazem daquela rede social um local (virtual) de troca de gostos musicais, fotográficos e até literários. E foi neste campo, o literário, que recebi o último desafio que, prontamente, aceitei. OK! Em bom rigor, não foi tão prontamente quanto a palavra assim o exige, já que deixei o desafio da poesia marinar por uns dias e aproveitei o Dia Mundial da Poesia para iniciar os meus quatro dias seguidos com um poema no meu mural.
E em que consiste o desafio, perguntam vocês?
Tal como o nome indica, o desafio da poesia consiste numa corrente de difusão da arte poética e fazer no Facebook um enorme sarau poético virtual. Alguém nomeia quatro amigos que, se aceitarem, deverão colocar um poema por dia, durante quatro dias consecutivos, bem como deverão nomear outros quatro e, assim, é feita a corrente.
Dos meus nomeados, três deles já aceitaram e já iniciaram a sua escolha poética, embelezando um mural que, na maior parte das vezes, é preenchido com um lavar de roupa suja constante e com uma meia dúzia de treinadores de bancada. O quarto nomeado, se bem o conheço, está a fazer como eu e deixou o ‘desafio’ marinar até ao momento adequado.
O que acharam?
A todos aqueles que sejam amantes de poesia, sintam-se livres de iniciar este desafio dentro da vossa rede de amigos. Basta copiarem o texto abaixo e aguardarem que os vossos amigos poetas dêem largas à sua imaginação e escolhem os poemas mais significativos das suas vidas.
Segue o mote do desafio:
“Fui nomeada pelo(a) meu/minha amigo(a) (…) para participar numa corrente de difusão da arte poética. Segundo as regras, devo indicar 4 nomes para darem continuidade a este ritual poético. O objectivo é fazer do Facebook um enorme sarau poético virtual. Nomeio (…), (…), (…) e (…). Cada uma destes amigos, se aceitar o desafio, colocará um poema por dia, durante 4 dias consecutivos, indicando outros 4 amigos/poetas para fazerem o mesmo.”
Os meus quatro poemas escolhidos são assinados por Antero de Quental, Natália Correia, Ary dos Santos e, por fim, em jeito de homenagem pela sua partida, Herberto Hélder.
Ora observem (leiam):
Dia 1 – ANTERO DE QUENTAL – O PALÁCIO DA VENTURA
Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!
Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!
Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!
Abrem-se as portas d'ouro com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão – e nada mais!
DIA 2 – NATÁLIA CORREIA – ODE À PAZ
Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves Outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!
Natália Correia, in "Inéditos (1985/1990)"
DIA 3 – ARY DOS SANTOS – ESTRELA DA TARDE
Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca tardando-lhe o beijo morria.
Quando à boca da noite surgiste na tarde qual rosa tardia
Quando nós nos olhámos, tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos, unidos, ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia.
Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça
E o meu corpo te guarde.
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria
Ou se és a tristeza.
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza!
Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram.
Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite se deram
E entre os braços da noite, de tanto se amarem, vivendo morreram.
Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça
E o meu corpo te guarde.
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria
Ou se és a tristeza.
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza!
Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso se é pranto
É por ti que adormeço e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto
Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!
Ary dos Santos, in 'As Palavras das Cantigas'
DIA 4 – HERBERTO HELDER
"que eu aprenda tudo desde a morte,
mas não me chamem por um nome nem pelo uso das coisas,
colher, roupa, caneta,
roupa intensa com a respiração dentro dela,
e a tua mão sangra na minha,
brilha inteira se um pouco da minha mão sangra e brilha,
no toque entre os olhos,
na boca,
na rescrita de cada coisa já escrita nas entrelinhas das coisas,
fiat cantus! e faça-se o canto esdrúxulo que regula a terra,
o canto comum-de-dois,
o inexaurível,
o quanto se trabalha para que a noite apareça,
e à noite se vê a luz que desaparece na mesa,
chama-me pelo teu nome, troca-me,
toca-me
na boca sem idioma,
já te não chamaste nunca,
já estás pronta,
já és toda"
Herberto Hélder, in A Faca não Corta o Fogo